Uma Ética da Leitura e da Tradução

Para realizar uma reflexão sobre a ética na tradução, é preciso galgar um caminho ousado, pois há um grande problema, típico de qualquer interpretação: há uma necessidade e, por outro lado, uma impossibilidade. O esforço de aderir plenamente ao texto original e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de nunca conseguir alcançar tal objetivo plenamente, o que representa o fracasso, a renúncia. Trata-se de uma aporia audaciosa e instigante para a teoria e a ética da tradução, entre necessidade e impossibilidade, que estimula a assumir uma postura corajosa.

Para conseguir formular uma ética da tradução é preciso renovar as reflexões sobre a filosofia da linguagem, como mostra Henri Meschonnic (em Poética do Traduzir e outros textos). A teoria da tradução pertence propriamente à filosofia da linguagem, como o Romantismo alemão já afirmou. Haroldo de Campos, o autor do conceito de transcriação (“A tradução como criação e crítica” e outros textos), defende que tradução é sinônimo de interpretação, portanto tradução, leitura e interpretação estão fundamentalmente no mesmo plano (embora não sejam exatamente iguais). O mesmo autor afirma que interpretação e criatividade devem andar juntas e que é preciso incorporar ao texto novo o estilo do original, torná-lo visível na textura do texto traduzido. Acompanhando Walter Benjamin, Haroldo afirma que, quanto ao valor, original e tradução, se encontram no mesmo plano, que é o plano da criação.

O tradutor e o intérprete miram a uma subversão do original, para liberar uma das infinitas interpretações que o texto guarda, um efeito que acaba se tornando multiplicador da leitura. Cada tradução (e cada interpretação) deve originar sua teoria específica, superando uma tradição conservadora, que defende a repetição de uma abordagem “consagrada” pela crítica. O objetivo da tradução e da interpretação é alcançar uma maior liberdade do texto, elemento que retroage para aumentar o potencial da leitura e do texto original.

Uma ética da tradução corresponde a uma ética da leitura, na medida em que a teoria da tradução é uma filosofia da linguagem, portanto a ética adotada na leitura é a ética que deve ser adotada na interpretação e na tradução. O caráter ético da atividade do tradutor reside na natureza de suas escolhas, empreendidas com objetivo de realizar uma leitura nova. Para ser nova, uma tradução e uma interpretação devem necessariamente assumir uma postura que, na maioria das vezes, procede contra a corrente: contra a interpretação tradicional e consagrada. O tradutor deve assumir suas escolhas e ter a coragem de defendê-las. A qualidade dessa nova tradução (ou interpretação) poderá ser medida pelo efeito que causa nos futuros leitores. Principalmente, se ela conseguir abrir novos caminhos de leitura e mostrar sinais de que poderá ser incorporada permanentemente pelo texto original. Dessa forma, a tradução (ou a interpretação) mostrará realmente sua tendência a tornar-se parte integrante do original, criando a justaposição que Walter Benjamin (A tarefa do tradutor) e Haroldo de Campos (Pedra e luz na poesia de Dante) defendem. Nessa operação, o tradutor, assim como o leitor e o intérprete, realiza suas escolhas (interpretativas) e assume a responsabilidade por suas decisões hermenêuticas. Trata-se de escolhas de caráter ético e jurídico. Em relação às traduções ou interpretações anteriores, na defesa audaciosa de alguma nova solução tomada pelo tradutor, as escolhas são éticas. Em relação à responsabilidade do tradutor (ou do intérprete) frente à Instituição social (ele responde judicialmente por um texto impresso ou uma solução adotada: é o caso de uma biografia, por ex.), ao caráter da responsabilidade da escolha, é jurídica. Se uma tradução (e uma interpretação) pode ser considerada inovadora depende, em princípio, de que possa ser considerada pertinente (solidamente amarrada ao texto original, se ela respeitar sua materialidade, se ela estiver literalmente abrigada nele) e produtiva, favorecendo uma multiplicidade das interpretações. A ética da tradução é o resultado desse esforço múltiplo do tradutor, recompensa sua coragem, sua ousadia e seu estilo. Pois ela almeja aquela leitura realizada pelo Pierre Menard de J. L. Borges: uma leitura subversiva e assombrosa, que, ao mesmo tempo, modifica o futuro e altera o passado. (A.L.)